quinta-feira, 25 de outubro de 2012

compro, logo existo



Não tem um único dia em que abrimos os jornais, ou assistimos a TV  sem nos deparamos com algum comentário com morte, roubo ou sequestro, entre tantas outras criatividades “bandidescas”. Elas têm como personagem principal o dinheiro, a grana, a bufunfa. Também não faltam ficções sobre o assunto. Livros e filmes com histórias bárbaras, de muita ousadia, para garantir a felicidade eterna com grana.
Dinheiro e tudo o que ele compra: para isso, vale morrer ou matar – em nome do poder e da felicidade; da possibilidade de ter de tudo. Penso, logo possuo. Compro, logo existo. Imediatismo. Necessidades que o consumismo desenfreado nos impõe. E nós? Aceitamos, sem questionar.
Quantas vezes falamos para nossos filhos, ou ouvimos amigos e conhecidos falarem: “Não posso, pois não tenho dinheiro”. Será que acreditamos mesmo que deixamos de fazer as coisas importantes por falta de recursos? Conheço uma senhora de quase oitenta anos que ganha dois salários mínimos de aposentadoria e mesmo assim, viajou pelo mundo todo. Sim, isso mesmo: México, Peru, França, Dinamarca, Rússia, Egito, Índia... Ganhando dois salários mínimos!
Como pode? Por que algumas pessoas conseguem fazer coisas com seu dinheiro, as quais nós, em geral, achamos quase impossível? Em que gastamos? O que valorizamos? Quanto de fato precisamos gastar? Meu pai, adaptando Sócrates, diz que adora passear no shopping para ver o enorme número de coisas que existem e que ele não precisa ter para ser feliz. Talvez seja essa a questão. 
Hoje é possível entrar em livrarias, sentar-nos, passar a tarde lendo sem comprar um único livro. Será que não está faltando interesse? Criatividade? Está certo que nunca pensamos em ir a algum lugar de venda de objetos sem que seja para consumi-los. Mas, consumir não quer dizer necessariamente levar para casa:

– Mãe, mãe! Compra pra mim essa árvore? Assim eu posso subir nela quando quero!
– Filho, essa árvore não dá pra comprar, é da pracinha. E cuidado pra não cair!
– Mãe, manhê! Então compra o sol que tá tão quentinho. Assim, quando estiver chovendo e chato, a gente solta ele pra brilhar pra nós.
– Filho, de onde tirou essa ideia? O sol, não tem dinheiro que pague.
– Ué, a gente não é rico?
– Sim, mas...
            – Assim não tem graça brincar no parque. Não dá pra comprar nada! Vamos pro shopping, mãe?


foto betânia dutra

terça-feira, 23 de outubro de 2012

imprudência


Sou cautelosa, prudente
Não fumo, não bebo
Durmo cedo
Como maçã todos os dias
Escovo os dentes antes de deitar
Paro na faixa de pedestres
Não como carne
Sorrio para os porteiros
Reciclo o lixo
Dou sempre um presente de natal 
Ao jornaleiro
Mas quando se trata de amor
Atravesso o sinal vermelho
Cometo delitos
Quero todos os excessos
Voar alto sem direção
 Perder o fôlego e a razão
Então cair na cama 
Aos pedaços
No outro dia
Acordo bem cedo
E juntar os cacos. 


foto betânia dutra

domingo, 21 de outubro de 2012

equívoco


Sabe aquela sensação de entrar correndo no ônibus e perceber que pegou o errado?
Assim senti quando me dei conta que estava na tua
Equívoco total
Mas já era tarde
O motorista já havia arrancado
“Um passinho a frente”
Pior é a certeza da roubada
Pior é saber que não vai dar em nada
E foi assim que aconteceu
Caí nas tuas promessas, segui na tua pista
Sentei ao teu lado, deixai pra ti a janelinha
O tempo foi passando,
Já estava até achando a viagem bonita.
Quando o ônibus então parou de sopetão
E tu, sem nenhum constrangimento me dissestes:
- Fim da linha.


foto do espetáculo histórias particulares
marcia do canto e julio reny

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

nudez









meu querido, pode tirar os sapatos, a gravata
relaxe um pouco
tire também a máscara
esse olhar presunçoso
não me fale das tuas conquistas
das mil mulheres que tiveste 
não tô a fim desse jogo de poder
de bandido e mocinho
eu já entreguei as armas, os pontos
vem pra cá, chega bem perto
dorme comigo
eu faço carinho nos teus cabelos
enquanto termino o meu livro
não te preocupa com teu ronco
eu sempre babo no travesseiro


foto betânia dutra

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

verdadeiro



Não me venhas com esse tom comedido e ilustrativo
quando te pergunto como estás.
Não sou tua mãe querendo saber o que fizeste no teu dia.
Nem teu chefe que quer saber se desempenhaste  bem tuas tarefas.

Sou uma mulher querendo saber da tua vida:
Das tuas lutas com teus fantasmas.
Das dores que não deixam marcas aparentes.
Das noites mal dormidas.
Das entrelinhas dos teus pedidos quando rezas.
Das fantasias que eu posso te causar.
Das tuas fraquezas, dos teus fracassos.

Não me venhas bancar o príncipe encantado,
Não sou do tipo que beija sapos.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

natureza





Adoro provocações
Esse negócio de calmaria não é comigo
Gosto do movimento
Dos vulcões em erupções que me sangram
Dos tsunamis que varrem minha razão
Não preciso me salvar de mim mesma
Sei lidar com as arrebentações
Sei curar minhas ressacas
Mas não vem com esse olhar de cachorro pedinte
Que quer um pouco de comida e um colo quente
Meus instintos não decifram esse código
Volta outro dia
Quando estiveres mais crescido
Menos mimado, menos enrustido


foto betânia dutra

terça-feira, 2 de outubro de 2012

mãos dadas


Querida amiga
Quando tempo não? Lembro de ti criança, cabelo solto encaracolado que tu insistias em colocá-lo atrás das orelhas. Mas ele, rebelde como tu, não ficava. Sempre decidida e com tanta iniciativa. Admirava-te muito. Segues comigo até hoje – lembranças das brincadeiras no pátio da escola, dos desenhos em aula, da tua voz clara e firme chamando os colegas. Menina forte e determinada como nunca fui. Lembro-me de uma situação, uma cena que ficou gravada na minha memória e que me visita de tempos em tempos, como ondas que vão e vem sem cansar de fazer o mesmo movimento, seguir o mesmo percurso.
            Nós brincávamos no pátio da escola, nem sempre com a participação da professora. Naquele dia, ela, linda e doce, nos chamou para brincar de roda. Com destreza e agilidade cheguei rápido e peguei sua mão. Eu consegui. Pela primeira vez eu estava na roda ao lado dela, da nossa professora. Local privilegiado. Lugar dos mais amados, dos bem comportados, dos mais corajosos e audaciosos. Tudo o que eu não era. Tudo o que eu queria ser. Instante de prazer e glória. Estava no céu. Eu consegui!
Tu vieste até mim, minha melhor amiga, e exigiu o meu lugar. Eu havia obtido o maior de todos os tesouros, e tinha sido por mérito, esperteza ou sorte, sei lá. Aconteceu que, naquele dia, eu consegui segurar a mão da minha professora e tu, sem o menor constrangimento, exigiste o lugar. Não tive escolha. Dei a ti minha maior conquista. Como um tigre faminto e exausto, abandonei minha presa logo após o golpe fatal. E saí, vendo o ultimo suspiro da minha caça. Não suportei a vitória. Não me permiti vencedora.
Querida amiga. Certamente não te lembras deste episódio, pois para ti foi apenas mais um dia. A tua conquista não teve a importância da minha recusa.  Tive muita raiva de ti. Este passou a ser o símbolo da minha covardia e, mesmo parecendo paradoxal, ponto de partida para minhas conquistas. Não ter, deu-me o direito de ser.
Esta carta não é uma queixa, minha amiga. Hoje, sigo tímida para falar em público e continuo com dificuldade de ter muitos amigos. No entanto, minhas mãos cresceram e pluralizaram meus caminhos. Com elas, embalo, acaricio, contenho. Suporte e acalanto. Crio e escrevo. Minhas palavras tornam-se mãos que se irmanam às de nossa professora do primário.
 Nem em sonho saberias a mão que me deste.