Era um domingo de outono como outro
qualquer. Os dias amanheciam com uma suave brisa. A terra levemente úmida,
teimava em apropriar-se das marcas dos nossos pés descalços, que corriam no
pátio. Logo que o sol ficava mais quente, autorizava as pegadas a dançarem
livres. Pó de terra remexida pela correria das crianças.
Foi em um dia assim que Rejane
chegou convidando-nos para um passeio diferente. Amiga e vizinha desde o jardim
de infância, Rejane gostava de novidades. Estava sempre inventando saídas
instigantes. Uma vez, ao entardecer, quando a chuva e o vento deixavam as ruas
desertas, fomos ao cemitério abandonado que havia próximo à saída da cidade.
Ela dizia que as almas gostavam de passear em dia de ventania, pois assim
podiam ir mais longe. Lá ficamos horas escondidas atrás de uma lápide
aguardando o bailado das almas.
Qual seria a aventura que Rejane nos
proporia hoje? Gostava dela. Olhar negro e forte. Cabelos crespos e amarelados
num corpo esguio. Lili e Zezé, minhas irmãs mais velhas adoravam quando ela
começava a contar suas inovações. Para mim, um misto de alegria e medo.
Chegara a poucos dias na nossa pequena cidade, algumas
carroças com pessoas muito alegres, cantantes e com vestimentas bem diferentes
das nossas. Olhar de desconfiança dos adultos. Curiosidade das crianças.
A Rejane já sabia onde haviam acampado e queria ir até lá
conhecê-los.
- Parece que
são ciganos. Vem de muito longe. Dizia Rejane com seu olhar negro arregalado.
- O que eles
fazem por aqui? Perguntou Zezé com ar preocupado.
- Eles não tem
casa. Vivem andando pelo mundo. Não podem parar. Se param criam raízes feito as
arvores.
- É? E por quê?
- Lili duvidando das noticias fresquinhas da nossa vizinha.
- Eles eram
escravos muito antigamente e até hoje ficam andando por aí. Não permanecem em
lugar algum por muito tempo para que ninguém resolva fazer deles escravos
novamente. Meu pai disse isso. Já minha mãe tem medo. Disse para a gente não
chegar perto porque, se eles não gostam da nossa cara, jogam praga. São
feiticeiros!!
Engolimos um grito de favor. Zezé,
Lili e eu suspiramos ao mesmo tempo para disseminar o medo que estava preso no
coração. Galopando com fúria, espalhou-se por nosso corpo todo causando um
arrepio.
Sem aguardar nem mais um minuto,
Rejane tomou à frente abrindo caminho como quem desbrava novos mundos. Logo
atrás Lili, Zezé e eu. A terra seca levantava poeira quando passávamos. Nenhuma
palavra foi pronunciada até chegarmos próximo ao rio Turvo. Passamos a escola
das freiras e pegamos o caminho da esquerda. Uma leve descida, mato e depois o
acampamento. As carroças estavam todas de um lado. Os cavalos pastavam à sombra
dos cinamomos e das tipuanas. Nós paramos ofegantes. Esticamos o olhar querendo
ver tudo. Querendo ver longe. Esperamos um pouco ainda em silêncio. Nenhuma
de nós queria consentir o pavor que corria em nossos corpos, assim como o suor
salgado.
- Eles devem
estar almoçando. Não convém atrapalhar, olha só, não tem ninguém na rua. Estão
todos dentro da barraca. - Disse a Zezé já levantando como quem está indo
embora.
- Que sem
graça vir até aqui e não ver eles. - Retrucou a Lili. Eu apenas inspirei como
quem pega fôlego para também lamentar, quando a Rejane falou:
- Então vamos
até lá!
Gelamos.
- Como assim
ir até lá?Não podemos invadir a casa deles.
- E se eles
estiverem fazendo algum feitiço como disse a sua mãe?
- E se eles
não gostarem da nossa cara?
Sem ouvir uma palavra do que
falávamos, Rejane levantou-se e, dirigindo-se à abertura da maior barraca do
acampamento disse:
- Eu vou!
Lembro perfeitamente de ver minha
amiga com seu corpo esguio e firme feito uma flecha lançada com força e certeza
atravessar o campo que nos separava do acampamento, e entrar na barraca. Logo
depois um silêncio constrangedor que pareceu durar muito tempo. Pelo mesmo
local que a Rejane entrou, saiu um homem velho de cabelos longos e grisalhos,
com um grande brinco numa orelha e o rosto marcado pelo sol. Caminhou em nossa
direção. Ele era grande e forte. Pegou minha mão e a mão da Lili. Dedos grossos
e mãos ásperas. Zezé caminhou ao nosso lado. Ele levou-nos para dentro da sua
casa com a delicadeza e cuidado de um pai. Então gritos, músicas e palmas.
Muitos anos depois descobri que eles
tinham uma superstição. Se as primeiras visitas em cada nova cidade que
chegassem fossem crianças, eles teriam uma boa estadia nesse lugar. E assim
foi. Quase todos os dias passávamos para brincar com eles, ajudar nos afazeres,
aprender a dançar e andar à cavalo. Feitiço, não sei, mas que eles deixaram
minha infância com sabor de aventura, disso tenho certeza.