Hoje faço cinqüenta anos. Tenho marcas no meu corpo. Não marcas de nascença, tenho marcas de “vivença”. Assim como um marinheiro que carrega o mapa de sua vida na pele. Gosto dele assim. Marcado, arranhado, lesado. Esculpido pelo vivido.
No lado direito do rosto um arranhão de gato, adquirido na infância, quando eu ainda não entendia a linguagem dos felinos. Nas coxas algumas estrias que vieram da adolescência. Ansiedade de me tornar grande. Ainda não havia sido apresentada às grandezas outras, que não a concreta.
Minhas mãos são largas e os dedos grossos de ter que me agarrar muito para não cair. Mesmo assim caí. Muito. Meu pé direito dói. Joanete. Às vezes lateja como que querendo sair em busca de diferentes ritmos e melodias, me fazendo lembrar que já quis ser bailarina. Não consegui. A vida me exigiu muito mais força que flexibilidade.
Minhas pálpebras estão mais caídas. Meus olhos bem abertos insistindo em serem esperançosos. Na pele algumas manchas que nem sei como foram parar ali. Segue macia e desejosa do calor pulsante de outras peles. Minha cintura alargou e meu ventre já não é tão firme. Ficaram mais confortáveis e aconchegantes depois de carregar duas crianças.
Têm dias que me olho no espelho e não me reconheço. Sou tantas outras além da que vejo. Talvez até por isso o corpo pese mais, feito um contraponto da minha ambiguidade, da minha contradição. A parte que pesa quer o frescor da relva, cheiro de grama, a segurança do solo. A outra quer o ar. Com uma linha invisível sou sustentada pela ambivalência. Assim me encontro no prumo. Até que um dia o corpo cai. Consolar-se na terra. Então, feito um balão de gás a outra parte se solta. Voar sem rumo. Livre. Quem sabe viver com as estrelas.