terça-feira, 17 de setembro de 2013

cartão ponto





















Não é da morte que tenho medo
Dor do rompimento 
Vida que se esvai.
Medo tenho 
Da quietude disciplinada
Falta de pulso
Negação da intuição
Desperdício 
De quem bate cartão ponto
Achando que a vida 
É uma repartição pública.

sábado, 20 de abril de 2013

Acalanto


sono venhas embalar meu filho
sono vem, mas vem tranquilo
filho lindo podes adormecer
não temas, não tenhas medo de sofrer

não chores filho a morte não vem
te entrega ao sono e aos sonhos também

sai pra lá monstro da morte
sai pra lá monstro da dor
meu doce menino
só conhece
o amor



segunda-feira, 4 de março de 2013

ciganos enganos




Era um domingo de outono como outro qualquer. Os dias amanheciam com uma suave brisa. A terra levemente úmida, teimava em apropriar-se das marcas dos nossos pés descalços, que corriam no pátio. Logo que o sol ficava mais quente, autorizava as pegadas a dançarem livres. Pó de terra remexida pela correria das crianças.
Foi em um dia assim que Rejane chegou convidando-nos para um passeio diferente. Amiga e vizinha desde o jardim de infância, Rejane gostava de novidades. Estava sempre inventando saídas instigantes. Uma vez, ao entardecer, quando a chuva e o vento deixavam as ruas desertas, fomos ao cemitério abandonado que havia próximo à saída da cidade. Ela dizia que as almas gostavam de passear em dia de ventania, pois assim podiam ir mais longe. Lá ficamos horas escondidas atrás de uma lápide aguardando o bailado das almas.
Qual seria a aventura que Rejane nos proporia hoje? Gostava dela. Olhar negro e forte. Cabelos crespos e amarelados num corpo esguio. Lili e Zezé, minhas irmãs mais velhas adoravam quando ela começava a contar suas inovações. Para mim, um misto de alegria e medo.
Chegara a poucos dias na nossa pequena cidade, algumas carroças com pessoas muito alegres, cantantes e com vestimentas bem diferentes das nossas. Olhar de desconfiança dos adultos. Curiosidade das crianças.
A Rejane já sabia onde haviam acampado e queria ir até lá conhecê-los.
         - Parece que são ciganos. Vem de muito longe. Dizia Rejane com seu olhar negro arregalado.
         - O que eles fazem por aqui? Perguntou Zezé com ar preocupado.
         - Eles não tem casa. Vivem andando pelo mundo. Não podem parar. Se param criam raízes feito as arvores.
         - É? E por quê? - Lili duvidando das noticias fresquinhas da nossa vizinha.
         - Eles eram escravos muito antigamente e até hoje ficam andando por aí. Não permanecem em lugar algum por muito tempo para que ninguém resolva fazer deles escravos novamente. Meu pai disse isso. Já minha mãe tem medo. Disse para a gente não chegar perto porque, se eles não gostam da nossa cara, jogam praga. São feiticeiros!!
Engolimos um grito de favor. Zezé, Lili e eu suspiramos ao mesmo tempo para disseminar o medo que estava preso no coração. Galopando com fúria, espalhou-se por nosso corpo todo causando um arrepio.
Sem aguardar nem mais um minuto, Rejane tomou à frente abrindo caminho como quem desbrava novos mundos. Logo atrás Lili, Zezé e eu. A terra seca levantava poeira quando passávamos. Nenhuma palavra foi pronunciada até chegarmos próximo ao rio Turvo. Passamos a escola das freiras e pegamos o caminho da esquerda. Uma leve descida, mato e depois o acampamento. As carroças estavam todas de um lado. Os cavalos pastavam à sombra dos cinamomos e das tipuanas. Nós paramos ofegantes. Esticamos o olhar querendo ver tudo. Querendo ver longe. Esperamos um pouco ainda em silêncio. Nenhuma de nós queria consentir o pavor que corria em nossos corpos, assim como o suor salgado.
         - Eles devem estar almoçando. Não convém atrapalhar, olha só, não tem ninguém na rua. Estão todos dentro da barraca. - Disse a Zezé já levantando como quem está indo embora.
         - Que sem graça vir até aqui e não ver eles. - Retrucou a Lili. Eu apenas inspirei como quem pega fôlego para também lamentar, quando a Rejane falou:
         - Então vamos até lá!
Gelamos.
         - Como assim ir até lá?Não podemos invadir a casa deles.
         - E se eles estiverem fazendo algum feitiço como disse a sua mãe?
         - E se eles não gostarem da nossa cara?
Sem ouvir uma palavra do que falávamos, Rejane levantou-se e, dirigindo-se à abertura da maior barraca do acampamento disse:
         - Eu vou!
Lembro perfeitamente de ver minha amiga com seu corpo esguio e firme feito uma flecha lançada com força e certeza atravessar o campo que nos separava do acampamento, e entrar na barraca. Logo depois um silêncio constrangedor que pareceu durar muito tempo. Pelo mesmo local que a Rejane entrou, saiu um homem velho de cabelos longos e grisalhos, com um grande brinco numa orelha e o rosto marcado pelo sol. Caminhou em nossa direção. Ele era grande e forte. Pegou minha mão e a mão da Lili. Dedos grossos e mãos ásperas. Zezé caminhou ao nosso lado. Ele levou-nos para dentro da sua casa com a delicadeza e cuidado de um pai. Então gritos, músicas e palmas.
Muitos anos depois descobri que eles tinham uma superstição. Se as primeiras visitas em cada nova cidade que chegassem fossem crianças, eles teriam uma boa estadia nesse lugar. E assim foi. Quase todos os dias passávamos para brincar com eles, ajudar nos afazeres, aprender a dançar e andar à cavalo. Feitiço, não sei, mas que eles deixaram minha infância com sabor de aventura, disso tenho certeza.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

vivenças



              Hoje faço cinqüenta anos. Tenho marcas no meu corpo. Não marcas de nascença, tenho marcas de “vivença”. Assim como um marinheiro que carrega o mapa de sua vida na pele. Gosto dele assim. Marcado, arranhado, lesado. Esculpido pelo vivido.
              No lado direito do rosto um arranhão de gato, adquirido na infância, quando eu ainda não entendia a linguagem dos felinos. Nas coxas algumas estrias que vieram da adolescência. Ansiedade de me tornar grande. Ainda não havia sido apresentada às grandezas outras, que não a concreta.
            Minhas mãos são largas e os dedos grossos de ter que me agarrar muito para não cair. Mesmo assim caí. Muito. Meu pé direito dói. Joanete. Às vezes lateja como que querendo sair em busca de diferentes ritmos e melodias, me fazendo lembrar que já quis ser bailarina. Não consegui. A vida me exigiu muito mais força que flexibilidade.
             Minhas pálpebras estão mais caídas. Meus olhos bem abertos insistindo em serem esperançosos. Na pele algumas manchas que nem sei como foram parar ali. Segue macia e desejosa do calor pulsante de outras peles. Minha cintura alargou e meu ventre já não é tão firme. Ficaram mais confortáveis e aconchegantes depois de carregar duas crianças.
             Têm dias que me olho no espelho e não me reconheço. Sou tantas outras além da que vejo. Talvez até por isso o corpo pese mais, feito um contraponto da minha ambiguidade, da minha contradição. A parte que pesa quer o frescor da relva, cheiro de grama, a segurança do solo. A outra quer o ar. Com uma linha invisível sou sustentada pela ambivalência. Assim me encontro no prumo. Até que um dia o corpo cai. Consolar-se na terra. Então, feito um balão de gás a outra parte se solta. Voar sem rumo. Livre. Quem sabe viver com as estrelas.